Poucos personagens terão sido, ao longo de toda a história da literatura, tão unânimemente repudiados como Sade. Esta repúdia, claro está, encontra a sua razão de ser no conteúdo da grande maioria dos seus livros, livros estes que nada mais parecem ser do que tratados sobre práticas sexuais, no mínimo, aberrantes.Pondo de lado as considerações sobre o cariz bizarro da sexualidade de Sade, cariz esse que percorre as suas obras, será importante pensarmos na produção literária do Marquês como um exemplo incontornável de um espírito de revolta.Neste sentido, bem sabemos que a história da humanidade é feita de rupturas mais ou menos violentas com a ordem moral vigente. Assim sendo, parece-me ser um erro atroz reduzir Sade a um mero escritor de livros pornográficos de muito mau gosto. O gosto, ou a falta dele, é uma questão que compete apenas ao escritor e, claro está, ao leitor.
Agora, enclausurar a vida de Sade, conceptualizá-la dessa forma tão redutora, é uma estranha forma de analfabetismo histórico. Sade não é um homem deste início de Sec. XXI. Sade foi um homem que viveu no século XVIII, numa França que por várias vezes, devido aos seus livros (e também devido a algumas das suas práticas sexuais) o condenou à prisão e, também, à morte. Aliás, apenas por ter "conhecimentos" escapou a esta sentença. A pergunta impõe-se, então: Sade foi condenado à morte porquê? Por causa daquilo que escrevia. E é aqui Sade se distingue daquilo que poderia ter sido um mero pornógrafo do Séc. XVIII. Ele correu esse risco e nunca deixou de escrever, nem nunca suavizou os relatos sexuais das suas obras. A França da Tomada da Bastilha, assim como a França precedente e a que àquela se sucedeu, tudo fizeram para calar a voz de um homem que reclamava um direito que, a todos nós, hoje, parece elementar: liberdade de expressão.Sade foi um incorrígivel espírito revoltado contra o seu tempo, um tempo que o quis calar. Por isso mesmo, e por nada mais, Sade faz, mais de duzentos anos depois, parte da história da literatura. Pela ruptura que impôs e, principalmente, por nunca ter cedido em algo em que acreditava profundamente: a sua liberdade criativa.Sade não passou à história por causa da pornografia e do sadismo em si próprios. Qualquer estudante de História sabe que textos e gravuras pornográficas existiam antes de Sade. Sade chocou o seu mundo por causa disso? Ainda hoje, pelos vistos, choca o nosso. Mas o que lhe garantiu um lugar na história foi a sua crença de que, acima de todas as concepções morais, se encontrava a sua liberdade criadora.Não criava nada que valesse a pena ser lido? Discordo, porque há que saber enquadrar as épocas em que as coisas foram escritas. No entanto, hoje isto é consensual, mal estará a arte quando tiver que se subjugar a princípios morais. No tempo de Sade era assim. Hoje, por vezes, ainda o é. Sade não seguiu essa regra e foi livre na sua expressão artistíca. Foi esse, em última análise, o mais importante legado que a obra de Donatien Alphonse François de Sade nos deixou.
(Ricardo Simães)
Nenhum comentário:
Postar um comentário